quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Bicão com classe


Por vezes os amigos Marcelo e Tomaz não eram convidados para festas de colegas do bairro. 

Enquanto Tomaz reclamava por não ser convidado, Marcelo não perdia tempo, muito menos uma festa, com ou sem convite.

 Marcelo chegava rindo como se fosse um convidado de honra. Tomaz já entrava no local da festa com o rosto vermelho e trêmulo com a possibilidade de serem expulsos e assim humilhados em público. Tomaz sempre se impressionava com a ousadia de Marcelo. O bicão entrava no salão ou na casa onde acontecia a festa, cumprimentava as pessoas, comia, bebia, ria e dançava. Tomaz não aproveitava nada, só imaginava o dia em que alguém notasse que eram bicões e os expulsassem.

Num belo dia de sábado foram passear na cidade de Antônio Carlos. Ao final da tarde notaram uma grande movimentação e Marcelo logo tratou de se informar. Era um casamento. E a pessoa que falou fez questão dizer que seria um baita casamento, um festão. Pudera. Casamento estilo interior, com direito a incluir um boi, porcos, frangos e muita bebida, além de música; bota festa nisso, afirmou Marcelo.

Tomaz segurou Marcelo pelo braço e tentou convencê-lo de que não era boa ideia. Que embora fosse festa grande e com muitos convidados era uma cidade onde todos se conheciam, não daria certo, não ali. Marcelo argumenta que não seria a primeira e nem a última, e que tudo daria certo como sempre.

Eles foram entrando e ficaram impressionados. Havia carne de boi, de porco, frango, maionese, polenta, palmito, cerveja, refrigerante e muito mais. A festa era animada por uma banda que fazia o mais tímido sentir-se um verdadeiro pé de valsa.

Os dois amigos se acomodaram com facilidade, parecia até que aquela mesa estava reservada para eles. A comida e bebida liberada faziam Marcelo comer sorrindo. Tomaz estava começando a entrar no clima quando nota os noivos se aproximando de cada mesa para cumprimentar os convidados.

Ele diz em voz baixa, mas com tom de pavor:

- Meu Deus, Marcelo. Olha lá. Os noivos vão chegar a nossa mesa, o que vamos fazer?

Marcelo, que estava quase terminando o segundo prato, disse:

- Fica calmo, rapaz. Comeu bem?

- Eu ia começar, mas e os noivos? Meu Deus, que vergonha.

- Fica frio, Tomaz. Talvez até passem direto.

Quando Marcelo passa a mão sobre a barriga satisfeita de comida e cerveja o noivo chega sozinho a mesa dos amigos penetras. Tomaz se levanta apavorado. Marcelo passa lentamente o guardanapo na boca e levanta com impressionante calma.

O noivo, com muita calma e educação, aproxima-se dos dois e diz:

- Prestem atenção. Essa é uma festa de casamento, do meu casamento. Aqui há familiares e muitos amigos, mas todos convidados. Não me parece ser o caso de vocês.

Tomaz sente vontade de sair correndo, mas teme desmaiar. Sabia que um dia isso aconteceria e havia chegado o dia.

O noivo diz gentilmente:

- Se já terminaram de jantar, por favor, saiam numa boa, sem problemas.

Vários convidados olham curiosamente, mas não ouvem o que o noivo diz.

Marcelo faz questão de sair com classe da situação e diz em voz alta para que os convidados ouçam:

- Foi uma grande honra estar nesta festa. Tudo está muito lindo e o jantar maravilhoso. Veja as expressões dos convidados. Peço perdão, mas meu amigo e eu precisamos ir, não vamos nem poder esperar pelo bolo. Desejo felicidade a esse lindo casal. Sinto muito, mas realmente precisamos ir. Boa noite!

Quando se aproximam da porta um dos garçons diz:

- Pena que tenham que sair tão cedo. Ouvi suas palavras. São os convidados que demonstraram mais classe até agora. Faço questão que levem alguns doces e um bom pedaço de carne!

Tomaz, tomado de uma confusão mental, vergonha e vontade de matar Marcelo, diz:

- Você ouviu o que o noivo disse? Viu o que aconteceu?

Marcelo responde ao amigo com entusiasmo:


- Sim. O noivo foi extremamente educado e discreto. O garçom muito gentil. Gosto de festas assim. Quanta classe, hein! 

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Arte e epifania


Que filme, música, peça de teatro ou notícia te fez sentir mais leve, mais humano, mais solidário ou sensível?

Que situação te fez repensar a maneira de encarar a vida, as pessoas e seus próprios objetivos na vida?

Em que momento pensou que poderia ser mais tolerante, aceitar, perdoar ou que deveria ter perdoado ou agido de maneira diferente?

A palavra epifania está diretamente ligada à religião (revelação), mas também tem uma aplicação e explicação na literatura.

Quando nos deparamos com uma cena de filme, peça teatral, uma leitura ou música e esta nos faz rever nossa vida e conceitos produzindo em nós um estranhamento; isto é epifânico.

Talvez um problema desse sentimento especial seja a sua durabilidade.

Acontecimentos que nos impressionam como as Paralimpíadas nos levam a refletir e a fazer mudanças, mas podem ser efêmeros ou passageiros.

Alguns breves exemplos de fatos e notícias que talvez causaram forte impacto: Quem de nós ficou surpreso e emotivo com a trágica morte de Ayrton Senna? Foi no dia 1 de maio de 1994. Isso faz 22 anos e até hoje lembramos. Mas o que realmente mudou em nossa vida pessoal?

A tragédia com o ator Gerson Brenner, vítima de bandidos que o balearam e o deixaram numa cadeira de rodas em 1998. O acidente com o ator Christopher Reeve, o super homem. Vítima de uma queda de cavalo em 1995 ficou tetraplégico e faleceu em 2004 aos 52 anos.

O ataque às torres gêmeas, World Trade Center, em 11 de setembro de 2001 deixou o mundo perplexo. Que diferença faz hoje?

Mais recentemente tivemos a trágica morte do ator Domingos Montagner.

Quantos comentários. Quanto lamento. Quantas reflexões. Haverá mudanças em nossa vida?

O último filme que assisti e me causou a epifania foi – Tempo de Despertar – de 1990 com Robert De Niro e Robin Williams.

É verdade que devido a gostos e sentimentos pessoais não nos emocionamos de igual maneira e nem com as mesmas cenas de filmes ou livros.

Falar ou lembrar tragédias com certeza não é produtivo ou animador.

Bom seria tirarmos lições práticas dessas cenas e acontecimentos.

Quando estava prestes a começar esta crônica perguntei a uma senhora qual foi seu momento “de epifania”. Ela disse que foi o infarto que sofreu. Fez mudanças na vida, na maneira de encarar a vida e viver a vida.

Algo muito bom é saber que não precisamos passar por uma tragédia para valorizar a vida e as pessoas a nossa volta.

Lamentar a morte de alguém famoso é normal. Mas e aqueles nossos vizinhos, ex vizinhos e parentes que sofreram ou sofrem dificuldades e não recebem a mesma atenção de um famoso?

Lembrei uma expressão interessante: “Se alguém é apenas ouvinte... é semelhante a um homem que olha seu rosto num espelho... vai embora e esquece como ele é”. Bíblia. Tiago 1:23,24. Notarmos que há campo para melhora e não dar bola é lamentável.

Uma música também me vem à mente: “Quem sabe faz a hora não espera acontecer...”.

Existe algo de proveitoso no processo de epifania na literatura: Deixar a emoção de momentos fazer a diferença. Olhar mais a natureza a nossa volta. Meditar na maravilhosa criação. Demonstrar mais e melhor nosso amor e sentimentos enquanto há tempo. Perdoar enquanto quem espera por isso ainda pode ouvir; os mortos não ouvem.

Literatura é comunicar através das palavras, a arte da palavra. Efeitos como percepção e emoções são compartilhados.

Se algo mudará ou não depois de certas cenas emocionantes dependerá de nós.

Caso contrário vamos continuar nos emocionando com as Paralimpíadas, lindas cenas de filmes e ótimos livros, mas vamos nos levantar e continuar naquela mesma “estrada” cheia de sentimentalismo e sem reação positiva!


quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Um modo de falar


Antônio sempre gostou de conversar, de contar histórias, falar do seu dia-a-dia. Um homem simples e ingênuo no seu vocabulário.

Getúlio, um de seus filhos, também gosta de uma boa conversa. E quando se trata de falar pai e filho tem algo peculiar.

Enquanto Getúlio caminha pelo mundo das gírias, o pai, Antônio, tem o hábito de tornar suas palavras e frases engraçadas e desajeitadas. Há pessoas que respeitam, outros debocham, mas a ingenuidade de Antônio nunca lhe permite notar nem uma coisa nem outra.

Getúlio chega ao trabalho e encontra o amigo Osvaldo que acabara de perder a mãe. Ele diz:

- Po bicho, saí do trampo e cheguei na baia pra rangar e minha coroa disse que a tua velha tinha batido as botas. Fiquei de cara meu.

Osvaldo completa:

- Pior que é cara.

Antônio sai do trabalho e monta em sua bicicleta. Ele começa a pedalar e logo pega muita velocidade. 

Minutos depois aparece na barbearia do Valmir todo machucado e com a bike toda torta.

Ele diz ao amigo barbeiro:

- O Valmir, tu não vai acreditar. Eu não vinha correndo com a minha bicicleta, não escorreguei no areão aqui na frente, não caí e não me ralei todo, e ainda não quebrei minha bicicleta.

Valmir, muito debochado, diz a Antônio:

- Que bom rapaz. Que bom que não vou acreditar. Que bom que você não vinha correndo, que não escorregou no areão aqui na frente, que não caiu. Não se ralou e não quebrou a bicicleta.

Antônio em toda sua inocência tenta explicar ao barbeiro:

- Não. Tu não entendeu Valmir. Aconteceu tudo que tu falou, só que ao contrário.

Enquanto Antônio toma um copo de água na barbearia comenta a morte da mãe do Osvaldo.

- Coitadinha da dona Flora, mãe do Osvaldo. Quando acordou estava morta.

O barbeiro Valmir, sempre debochando, diz a Antônio:

- Acordou morta, Antônio?

- É isso mesmo, Valmir. Já pensou que loucura, que susto. Acordar e vê que ta morto?

 Antônio continua sua narrativa sobre a morte da mãe de Osvaldo:

- A pobrezinha morreu na sexta-feira e se enterrou no sábado.

Novamente o barbeiro com seu sarcasmo provoca Antônio sem que ele perceba:

- Poxa, ela se enterrou? Não havia ninguém para enterrá-la?

Antônio responde:

- Agora tu me pegou, rapaz. Foi o que ouvi. Mas parece tinha bastante gente no enterro.

O barbeiro pergunta a Antônio:

- Estás morando aqui perto?

- To sim. Não tem essa rua que asfaltaram agora. Não tem o posto de saúde. Não tem um mercadinho ali na esquina. Então, eu moro do lado.

O barbeiro termina de atender um cliente e diz a Antônio:

- E aí Antônio, vai cortar o teu cabelo?

Antônio sem perceber dá a resposta que Valmir não imaginava:


- Eu não sei cortar cabelo, Valmir. Ainda que do teu jeito prefiro que tu corte pra mim!

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Contra a vida?


Se já passou pela sua cabeça em algum momento da sua vida acabar com tudo, colocar um “ponto final”, ou de maneira mais clara, se já pensou alguma vez em cometer suicídio saiba que 17% das pessoas no Brasil já pensaram em fazer isso.

Desesperança, desilusão, impulsividade, sentir-se um fracasso ou um peso para outras pessoas, além de doenças como a depressão, bipolaridade, alcoolismo e outras drogas têm sido marcadas pela a OMS (Organização Mundial da Saúde) como a causa de mais de 800 mil suicídios em todo o mundo e quase 12 mil só no Brasil em 2012.

 Alarmante: A cada 40 segundos uma pessoa comete suicídio em todo o mundo. No Brasil são mais de 10.000 casos por ano, ou 30 por dia. Hoje, em todo o mundo, são mais de um milhão de suicídios por ano.

Entre os jovens de 15 a 29 anos já é a terceira principal causa de mortes.

Falar ou não falar sobre o suicídio, eis uma importante questão.

De um lado a imprensa e muitos profissionais da saúde que na melhor das intenções creem que expor ou divulgar casos de suicídio servirá de incentivo a pessoas propensas a isso.

De outro lado alguns da imprensa e da área da saúde acreditam que “abafar” o assunto só faz piorar a situação.

Uma coisa é certa, os números não mentem, ao contrário, assustam.

Sempre defendi a divulgação do suicídio como meio de “abrir nossa mente” e do poder público para combater o suicídio. Confesso, porém, que meses atrás senti na pele certa dificuldade. Quando vi o sofrimento de familiares de um grande amigo que possivelmente cometeu suicídio cheguei a rever, ainda que momentaneamente meus conceitos sobre o assunto. Acreditei que se a notícia fosse abertamente divulgada como suicídio (ainda que no caso em questão haja poucas dúvidas), a família sofreria mais, talvez se sentindo culpada.

Mais devastador do que a notícia da morte de um ente querido é saber que ele tirou a própria vida.

Para cada suicídio pelo menos outras seis pessoas são afetadas diretamente. São familiares ou amigos íntimos que têm sua dor da perda aumentada com o sentimento de: Como não percebemos? Por que não fizemos nada? Se tivesse prestado atenção aos sinais... Quem sabe ele estaria aqui.

O Dr. João Paulo de Oliveira Branco Martins – Médico Psiquiatra Titular da Associação Catarinense de Psiquiatria: CRM SC/18062 RQE 12342 – colaborou de maneira especial com dados e informações para esse artigo.

Estima-se que 50% dos que cometeram suicídio já haviam sem êxito tentado tirar a vida.

As informações enviadas pelo médico psiquiatra: João Paulo Branco Martins nos lembra de outros fatores importantes.

O suicídio por mais que possa ser planejado é transitório, podendo durar de minutos ou horas.

O investimento na capacitação dos profissionais da saúde, que embora não possam prever o suicídio, poderia torná-los capazes de discernir sinais e regiões onde há maior propensão.

Sabendo que hoje já são mais de um milhão de suicídios em todo o mundo, e que pesquisas apontam que até 2020 esse número pode aumentar em até 50%, podemos nos concentrar no Brasil.

Nosso país é o 8º no número de suicídios. Todos os anos, 10.000 casos. Na média, 30 por dia.

A terceira maior causa de morte entre os jovens. Se notou que já havia lido esses dados nesse artigo/crônica não é mera coincidência. É duro, mas é verdade, é fato. Enforcado, com um tiro, com abuso de medicações e de outras formas. Milhares de pessoas podem ser ajudadas. Milhares de famílias poderiam não estar sofrendo. Quem sabe outras possam não ter esse trauma. 

Noticias locais: Moça cai da ponte... Um homem é tragicamente atropelado por um caminhão... 
Médico conceituado é encontrado morto em seu apartamento.

Quando é um famoso como o ator Robin Williams a noticia é direta.

O drama do tabu e da religião. Durante muito tempo e talvez até hoje o suicídio seja encarado como um dos piores pecados, senão o pior.

Para refletir: Religiosos bem intencionados pregam ou evangelizam em penitenciárias. Dizem a assassinos que se eles se arrependerem Deus perdoa. Não duvido disso. Mas se um assassino, alguém que de livre e espontânea vontade, por ambição, tirou a vida de uma ou mais pessoas tem direito ao perdão; por que não alguém que tirou a própria vida? Por acaso alguém se mata porque está numa boa e acha que já é hora de morrer? Só Deus para saber o que passa pela mente de um suicida.

E ademais. Imagine uma família sofrendo com a morte de um ente querido. A dor aumentada por saber que foi suicídio. Então chega alguém e diz que é um pecado sem direito a perdão.

O silêncio pode ser mais consolador do que muitas palavras.

No mês de setembro há uma mobilização ao combate ao suicídio. Mas o suicídio continua ocorrendo nesse e nos outros 11 meses, em cada dia, em cada família e em cada mente que sofre os horrores das doenças psíquicas que levam a esse pensamento e ação.

Guerras, violência, acidentes, catástrofes naturais, doenças tiram a vida de muitas pessoas todos os anos. Quantas poderiam ser evitadas? Quantas dessas vítimas merecem um julgamento?

Solidariedade e empatia com as famílias que sofrem com o suicídio. Atenção com aqueles que de alguma maneira demonstram o desejo de tirar a própria vida. Não é o caso de pegá-los pela mão e lhes mostrar pessoas que ao nosso olhar sofrem mais.

Muitos pensam assim: “Há tantas crianças e outras pessoas sofrendo tanto e nem por isso pensam em tirar a vida”. Como se esse argumento fosse ajudar alguém com pensamento suicida. Isso é diminuir ou desvalorizar sua dor.

Se perceber um amigo ou familiar com essa possibilidade precisamos o orientar a procurar ajuda profissional. Ajuda de um qualificado profissional da saúde.

A matéria enviada pelo médico psiquiatra, João Paulo Branco Martins nos lembra: “Erros e preconceitos vêm sendo historicamente repetidos, contribuindo para a formação de um estigma em torno da doença mental e do comportamento do suicida. O estigma resulta de um processo em que as pessoas são levadas a se sentirem envergonhadas, excluídas e discriminadas”.

Não cabe a nós julgar quem atenta contra a própria vida, em vez disso podemos trabalhar nossos conhecimentos através da compreensão e empatia.


Eis os desafios: Falar sobre o assunto e saber o que falar!