segunda-feira, 18 de junho de 2012

Um olhar e seus pensamentos

Eu já o conhecia. Havia passado por ele várias vezes a caminho de meu apartamento. Percebia sua grande dificuldade em descer e subir as escadas, mas foi num certo olhar que vi muito mais que essa dificuldade. Daí é que na literatura fala-se do processo epifânico. Epifania tem sentido religioso, significando revelação, mas é também aplicado a situações do dia a dia. Situações que ocorrem ao assistirmos a filmes, numa leitura, ou mesmo num fato comum como a observação de certa cena. Nesse instante, quase que automaticamente nos tornamos mais humanos, mais sensíveis, vemos as coisas de outra forma. Era por volta do meio-dia, eu estava ansioso com muitas coisas para fazer, e com alguma indisposição, para alguns talvez preguiça. Assim que desci do carro e fechei a porta, olhei para cima e vi o tal rapaz. Ele olhava pela janela, para algum ponto ao horizonte em que eu não conseguia ver por mais que olhasse na mesma direção. Fiquei ali parado alguns instantes. Deixei de pensar para onde ele olhava. Passei a pensar no que ele estaria pensando. Lembrei de quando ouvi a sua história. Do tiro de um agente da lei que o havia condenado aquela cadeira de rodas. O tiro foi um grande equívoco do policial. O rapaz era trabalhador e honesto. Sem passagens pela polícia. Com menos de trinta anos viu sua vida mudar completamente. Para onde ele olhava não mais importava, mas no que ele pensava com seu olhar tão fixo? Fui em direção ao prédio e comecei a subir as escadas. A indisposição ou preguiça, junto à ansiedade haviam dado lugar a uma reflexão que fazia sentir o prazer de subir cada degrau. Passei a lembrar das muitas vezes que vi seus amigos descendo ele sentado na cadeira, às vezes subindo. Seus amigos costumavam sair com ele. Sentir as pernas obedecendo ao meu comando. Saber que almoçaria e logo desceria tão rápido aquelas escadas que não mais me daria conta de como me obedecem minhas pernas. A tarde teria muitas tarefas. Pensei que não mais me lembraria naquele dia da cena tão impressionante. Durante a tarde por várias vezes lembrei aquele olhar. No que ele pensava? Que sonhos devia ter? O que gostaria de estar fazendo naquele dia? A noite chegou. Minha esposa foi ao apartamento do rapaz entregar um perfume. Sua mãe falou sobre o dia especial que o filho tivera. Ele estava muito ansioso. Aguardou quase o dia inteiro a entrega de sua nova cadeira de rodas. Ele mostrou-a a minha esposa. Com a ajuda do pai, do irmão, e mais um amigo, a nova cadeira estava montada. Minha esposa falou que entendia sua alegria pela nova cadeira, mas lamentava a situação. Ele disse que estava o dia inteiro na expectativa da chegada de suas novas pernas. Era assim que chamava a cadeira de rodas. Outro dia quando cheguei, olhei em direção de seu apartamento e lá estava ele, com o mesmo olhar, não sei se com os mesmos pensamentos. Olhares até apontam uma direção, mas jamais revelam pensamentos.

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